segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Tabletes só de chocolate


"Estado de Guerra", de Clara Ferreira Alves, reúne mais de uma centena de textos da autora publicados nos útlimos anos.
Como é natural, não concordo com algumas das suas opiniões, mas sou um admirador da sua prosa.
Estou quase a terminar o livro e não resisto a partilhar uma das crónicas, publicada em 2011, da criadora de "Pluma Caprichosa" no semanário Expresso.





TABLETES SÓ DE CHOCOLATE

Tabletes só de chocolate. Sou do papel não sou do iPad. Gosto de tudo no papel. Da textura macia, do cheiro que lembra cheiro de coisas por estrear. No papel acontecem as palavras. Mesmo que escreva num computador preciso do print para corrigir, para ler o texto. No computador, os olhos criados por livros não conseguem ver a folha, a esquadria, a tensão da frase, o recorte da pontuação. Gosto do papel dos livros novos, acabadinhos das impressoras, gosto do papel amarelado rugoso dos livros velhos, onde se encontra ao virar da página um bilhete para a ópera ou para o teatro, um apontamento, foi há 20 anos, onde é que eu estava nesse dia? E com quem?, e o bilhete vira Madalena de Proust. O papel sabe a memória.

Sei os livros que levei para aqui, os que deixei esquecidos num avião, num banco, num quarto de hotel, os que perdi. Sei os livros de que gosto muito. E gosto de revistas lustrosas nunca lidas, nunca folheadas, à espera que as dedilhe pela primeira vez. Gosto de jornais de Sábado com o pequeno-almoço, onde começo por ler as pequenas antes das grandes, onde criei hábitos de leitura, rubricas, colunas, gente que escrever como eu. Gosto das surpresas das notícias, gosto dos broadsheets, que se encarquilham e mascarram os dedos, gosto dos suplementos e das revistas, gosto de regressar a um jornal como quem regressa a um amigo. Não tenho prazer em ler uma revista num iPad, não me dá gosto o touchscreen. Acho o nome iPad, com as maiúsculas e as minúsculas exibicionistas, uma vaidadezinha. Que interessa? Ipad? iPad? IPAD? Não preciso de fotografias cinematográficas, preciso de lustro e de sombra, preciso de as sentir como matéria, substâncias tácteis que vão-se amachucando e envelhecendo nas minhas mãos. Não quero ecrãs nem três dimensões. Gosto das duas dimensões, gosto de larguras e comprimentos, gosto dos jornais que esvoaçam num de vento como papagaios. Gosto do virar da página e sei onde estão as coisas.

Não quero ler o Guerra e Paz num iPad, muito menos no Kindle. Quero ler o Guerra e Paz na minha velha edição de bolso, com pontas dobradas em pequeníssimos triângulos da usura do tempo, com os bordos comidos pelos dedos, a capa original, as centenas de folhas finas que tornam a leitura na cama um pouco mais difícil porque o livro é pesado. Gosto desta dificuldade. Do peso dos livros. Gosto de sair de casa com um livro ou uma revista dentro da mala para o caso de ter de entreter o tédio num desses departamentos da vida quotidiana onde somos obrigados a esperar. Um Kindle precisa de bateria e tem umas horas de autonomia. Horas? os livros e revistas de papel têm a autonomia da eternidade. Gosto de bibliotecas. Gosto de arquivos. Gosto de fotografias de papel. Quem guarda mails? Não quero um texto, quero um livro. Não gosto da civilização descartável.

Sou do papel e do papel serei. Cada vez que me falam na morte do papel revolto-me. Nada pode substituir um bloco de notas quando tenho uma ideia. Onde guardo eu uma ideia ni iPad? Não sei como guardá-las lá dentro, rodeada de informação, ícones, visualizações, propostas, truques. Quando vou pela ideia, perdi-a. Esfumou-se. A minha ideia gosta de ser passada a lápis. E não me falem em blackberries e outras berries nem em iPhones, acho tecnologia a mais para um pobre telefone. Não contribuo muito para o mealheiro de Steve Jobs.

Não concebo um mundo digital sem papel, e se ele vier intergrarei as seitas reacionárias que usam matérias proibidas. Entre o dano das árvores abatidas e o dano da terra rara, para não falar na pluição dos cemitérios tecnológicos, prefiro a morte de árvores. O papel é reciclável.
(...)


in "Estado de Guerra - Dez anos de prosa", de Clara Ferreira Alves, pp. 413-415

2 comentários:

Vanessa disse...

Adorei, e apesar de ter uma "tablete" continuo, tal como a Clara, a preferir o erotismo dos dedos com o papel, essa terra única de sedução entre pensamento e escrita, o diálodo da palavra impressa com a mente que a lê.
P.S. Tenho mesmo de ter esse livro :)

Ricardo disse...

Terminei anteontem de o ler. Vale mesmo a pena!
A mulher escreve sobre tudo e mais alguma coisa de forma bastante apelativa.
Relata inúmeros episódios - num deles fiquei a saber, imagina, que Cesariny, à afirmação de CFA de que Almada não tinha nada para ver, respondeu: "Menina, Almada é Nova Iorque" (e mais não digo) -, pessoas que conheceu e viagens que fez.
PS- Não percas tempo, este é daqueles que vale a pena ter.
PPS- Depois de mim, a K vai começar a lê-lo.